Marisa Monte refuta os que a acusam de ceder à sonoridade fácil e se popularizar demais em seu novo disco. "Sempre cantei para muitos", diz a intérprete, que está percorrendo o país com o show "Verdade uma Ilusão"
Em julho, Marisa conversou com BRAVO! por duas horas e meia. Ela própria escolheu o ponto de encontro: o Instituto Moreira Salles, um belíssimo casarão de traços modernistas no Alto da Gávea, Zona Sul do Rio. Preferiu sentar-se ao ar livre, perto da piscina e sob algumas árvores.
Cinco semanas depois, desembarcaria em Londres para encerrar a Olimpíada, cantando o samba Aquele Abraço e uma ária das Bachianas. Estaria caracterizada de Iemanjá.
Foto: Ana Paula de Andrade
Por Armando Antenore:
Marisa Monte: Pensando bem, a palavra mais adequada é "existencial", e não "existencialista". Tentei produzir um CD que reflete sobre a existência, sobre como desfrutar o máximo de nossa passagem pela terra. Afinal, estamos aqui por uma temporada apenas. As canções do álbum, no fundo, pretendem jogar para o público uma indagação: e quando a viagem terminar? E quando você chegar lá na frente? Poderá observar o caminho percorrido e concluir que o aproveitou? sob o coloquialismo e a simplicidade de cada letra, há questões complexas, muito profundas. Já declarei antes e repito agora: "O disco trata do "bem-viver" mais que propriamente do viver. "Hoje eu não saio, não/Não troco meu sofá por nada, meu bem/Hoje eu não saio, não/Não troco meu sofá por nada, meu bem/Hoje eu não saio, não/Não quero ver a multidão", avisa uma das músicas. Outra, a que inspirou o título do CD, convida: "Vai sem direção/Vai ser livre/A tristeza não/Não resiste/Solte os seus cabelos ao vento/Não olhe pra trás/Ouça o barulhinho que o tempo/No seu peito faz/Faça sua dor dançar". Percebe? Meu desejo é sugerir às pessoas que entrem em contato com a instituição, que identifiquem as próprias necessidades e as utilizem como guia durante a jornada, sem se influenciarem unicamente pelas vontades coletivas.
Não tenho a menor pretensão de criticar a crítica. Eu comento o meu trabalho e assino embaixo. O crítico escreve o texto dele e assina embaixo, pronto, cada um é cada um! A amizade permanece igual. (risos) Construo o que posso, o que julgo mais bacana, com imenso carinho e dedicação. Muitos se arrepiam e me agradecem: "Nossa, que coisa maravilhosa!" E há aqueles que torcem o nariz: "Negócio chato, meu Deus!" Numa boa. Não preciso seduzir a torcida do Flamengo inteira. Encantar alguns já me satisfaz. Na verdade, a opinião do público e da crítica deixou de me surpreender. Aprendi que, quando falam de mim, fãs e desafetos estão falando de si mesmos, do modo como encaram as relações, os problemas, os sonhos. Sirvo apenas de pretexto.
Você consegue de fato se distanciar?
Completamente, vou levar todo mundo a sério, seja quem me adora, seja quem me odeia!
E você acredita nas mensagens otimistas que canta? Crê realmente que "a tristeza não resiste", por exemplo?
Se nos mantemos em sintonia com nossos sentimentos, se nos conservamos íntegros, aumentam as chances de esbarrarmos na felicidade. Além do mais, o ser humano possui uma capacidade incrível de recuperação. Claro que certas tristezas nos abalam enormemente. Ainda assim, acho possível superá-las, não no sentido de eliminá-las, mas de transformá-las. "Faça sua dor dançar", não é? Ou melhor: compreenda que a dor pode até continuar presente, desde que modificada. Aliás, um verso como: "Faça sua dor dançar" não me parece tão fácil, tão banal. Soa pra você?
Não, não soa. Já outros... "Seja feliz", "Curta a vida"...
Pô, não vale! (risos) Você está citando os versos isoladamente, sem considerar o resto da canção. "Seja feliz/Com seu país/Seja feliz/Sem raiz." Tem umas brincadeiras, uns jogos de palavras, não tem? "Tão largo o céu/Tão largo o mar/Tão curta a vida/Curta a vida." Há duplo sentido, não há? Curtir a vida curta. Existe uma elaboração por trás da simplicidade.
Existe, mas talvez menor do que em discos anteriores
Será? Suas ideias não correspondem aos fatos. (Cantarola, rindo) Sempre gravei canções de letras muito simples. Pegue meu primeiro disco, MM. Trazia músicas simplíssimas, como o Xote da Meninas. "Ela só quer/Só pensa em namorar" é, por acaso, menos simples do que "Tão curta a vida/Curta a vida"? E Lenda das Sereias, que também integra o primeiro disco? Tem algo mais simples do que "Ela mora no mar/Ela brinca na areia/No balanço das ondas/A paz ela semeia"? Sabe o que acontece? Há uma confusão imensa entre a minha postura e o meu trabalho. Pauto-me geralmente pela discrição e me exponho na mídia apenas quando necessito divulgar um projeto. Em contrapartida, minha arte nunca abdicou de ser generosa, de ser para todos. Jamais compliquei. Gosto que me compreendam. Logo que apareci, ganhei a pecha de Cult. E o rótulo, curiosamente perdura até hoje. Eu cult?! De forma nenhuma! Nunca fui cult! Desde o início da carreira, costumo atingir muita gente. A crítica diz que faço MPB, certo? Música popular brasileira. Popular! Esperavam o que de mim? que compusesse exclusivamente canções para tocar em piano-bar? Sinto-me tão popular quanto a Paula Fernandes ou qualquer cantor que se ligue à MPB. E desejo, sim, me comunicar com quem escuta a Paula. Qual o problema? É uma ambição condenável? Agora, longe do palco, não assumo atitudes que, de acordo com o senso comum, uma cantora popular deveria assumir. Resultado: Bagunço a cabeça da galera! "Peraí, a Marisa não se comporta como uma cantora popular, mas é uma cantora popular?! Não pode!" (risos) Cara, olha só que lindo!
O que?
Um tucano! Vê o rabinho dele bem ali, em cima daquela palmeira?
Vejo.
Não, você não está vendo! (risos) Levante-se e venha observá-lo. (Concordo em ir.) Viu? Diz que tucanos comem ovos de passarinhos. Por isso, os ornitólogos os detestam.
Você reconhece aves com facilidade?
Não... Mas qualquer um reconhece um tucano, vai! Você já se tocou de que os pássaros são uma espécie de cantores românticos? Sério! Aves cantam o amor. Se o tucano está de olho numa tucana, procura atraí-la de que modo? Pelo canto! (risos) Sobre o que conversávamos mesmo?
Sobre o fato de você buscar a simplicidade como artista
Não busco a simplicidade. Eu sou simples! Trata-se de uma característica minha. Coisas singelas me põem feliz: admirar um tucano, secar o cabelo no sol, fazer um tricozinho, preparar ovo mexido para meus dois filhos, caminhar, bater papo com os amigos. Não necessito de nada muito sofisticado, muito raro, muito incrível. Helicóptero, automóvel do ano, ilha não sei onde, casa de veraneio? para que? Vivo confortavelmente, lógico, mas sem luxos, sem excessos. Não tenho como meta acumular capital. Julgo um privilégio extrair o sustento de uma atividade que oferece beleza e emoção às pessoas. É um dos meus grandes tesouros, uma maneira linda de me colocar no mundo.
Você não precisa nem do sucesso?
Depende de como se entende a palavra. sob a minha ótica, sucesso quer dizer concretização. Significa transformar ideias em realidade. Tome o caso de uma colcha. Basta confeccioná-la, tirá-la da esfera imaginária para ter sucesso. Nesse sentido, óbvio que preciso dele.
E se ninguém apreciar a colcha?
Paciência. Continuo tendo sucesso. o êxito não se mede pela aprovação alheia ou pelo reconhecimento financeiro.
Pensa assim por influência da contracultura, dos hippies?
Não, parece que nasci desse jeito. (risos)
Você está com 25 anos de carreira. Quando começou, sonhava chegar tão longe?
Não sonhava nem fazia ideia de quais estratégias abraçar para conquistar o que conquistei. Apenas gostava - e sigo gostando de cantar. Sempre me preocupei, aliás, em cultivar o prazer no trabalho. Hoje, analisando minha trajetória, desconfio que tudo ocorreu como tinha de ser.
Destino?
Talvez uma combinação de destino e escolhas. Creio que cada um de nós precisa ajudar a sorte. Você pode se flagrar diante de uma predestinação bacana, mas se não tomar as decisões corretas... Desde o princípio, tentei honrar as oportunidades que pintaram. Fui responsável. Jamais me entreguei à preguiça ou à autocomplacência. Nunca aceitei a lei do mínimo esforço: "Ah, vamos produzir um disco meia boca porque ninguém irá perceber". Em resumo: Batalhei à beça. No entanto, apesar de valiosíssima, a carreira não se tornou o principal item de minha vida.
O que você preza mais?
A saúde, tanto a psicológica quanto a física. Doente, não estarei feliz e não conseguirei levar felicidade para ninguém.
Você cuida muito da saúde?
O suficiente. Não fumo, quase não bebo álcool, zelo pela alimentação e pratico exercícios com frequência. Ioga, alongamento, ginástica localizada, musculação, bicicleta, esteira... já fiz um pouco de tudo. Busco me preservar e não gasto energia à toa, principalmente em turnês. Evito aquele papo de varar a madrugada na farra e acordar exausta para mais uma apresentação. Percebi logo cedo que a estrada pode ser bastante insalubre se o artista confundir o ofício com uma festa eterna. o público de qualquer show está ali porque quer se divertir. Então enche a cara, prolonga a noite e tal. Mas os músicos não deveriam agir de maneira idêntica, já que amanhã terão novo espetáculo e, depois de amanhã, outro. Enfim... Se não virei doidona nas últimas duas décadas, não viro mais. Minha disciplina de atleta impedirá. (risos)
Você é mesmo disciplinada como um atleta?
Tenho personalidade de atleta, cara! Adoro rotina, adoro cotidiano. Nada melhor do que horário para dormir, levantar, almoçar, malhar e dispersar. Invento rotinas até quando me encontro na loucura de uma turnê. Gosto de repetição, de produção em série. Vou citar outra vez o exemplo da colcha. O artesão tece diariamente cada pedacinho dela, cada quadrinho. São milhões de fragmentos e um parece igual ao outro. Só que, no fim da tarefa, aquela porção de quadrinhos semelhantes geral algo inteiramente novo: uma colcha!
Compreendi agora porque o tricô a deixa tão feliz...
O tricô e o artesanato de um modo geral. Preservo o hábito de me dedicar a trabalhos manuais desde a infância.
Criar filhos também exige obediência à rotina.
Por isso, me julgo uma excelente mãe. (risos) sou parceira das crianças (um menino de 9 anos e uma garota de 3, frutos de dois casamentos). Brinco sempre com elas, estudo, converso. Uma delícia! Pureza total! Super-refrescante! Depois que a caçula nasceu, decidi fazer terapia na tentativa de refletir um pouco mais sobre educação, maternidade, imposição de limites. E sobre o fato de, às vezes, por causa das viagens profissionais, me distanciar das crianças.
Sente culpa?
Sinto-me como qualquer mãe que trabalha, uma advogada, uma médica ou a moça que deixa os filhos em casa para cuidar da minha. É uma questão com a qual precisamos lidar. Vou mostrando às crianças que meu afastamento momentâneo as torna mais independentes, mais maduras.
E os 45 anos, estão pesando?
Nem um pouco! Considero a velhice o preço justo que pagamos pela vida. O Correr do relógio não me atormenta. Mesmo porque ninguém fica velho de repente. O negócio vai acontecendo devagarzinho. Dá tempo de a gente se acostumar.
Fonte: Revista Bravo/Setembro/2012.
Ao fazer um intercâmbio entre os estilos musicais, Marisa Monte segue há mais de duas décadas aclamada por uma legião de fãs. Confira essa matéria no site da Revista BRAVO!
Foto: Don Munro e Dora Jobim